Trinta dias se passaram desde que a costureira Márcia Teixeira, de 47 anos, teve a confirmação da morte da sua filha, a adolescente Stefany Vitória, de 13. O corpo da menina, que estava desaparecida, foi encontrado em um matagal no dia 11 de fevereiro, em Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte. A garota foi morta por um pastor, que era conhecido da família e confessou o crime. Em menos de um mês, uma outra menina, identificada como Yara Karolaine, de 10, também foi encontrada sem vida. Um homem, de 56, que conhecia a garota, disse ter cometido o assassinato. O crime ocorreu em Água Boa, na região do Rio Doce.
Stefany e Yara são vítimas de uma violência que tem se tornado recorrente e alertado as autoridades públicas. Em Minas Gerais, as denúncias de violações de crianças e adolescentes aumentaram 21,04% em 2024. Conforme levantamento do Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, foram 23.534 denúncias recebidas no ano passado, frente a 19.442 em 2023. São violações físicas, como homicídio e agressão, psíquicas e até mesmo patrimonial, que têm como alvo menores de 14 anos. "Essa violência, infelizmente, sempre existiu, mas era subnotificada. O que a gente tem visto é um maior acesso das pessoas aos canais de denúncia, e mais coragem para denunciar", aponta a defensora pública Daniele Bellettato Nesrala.
O levantamento do Disque 100 aponta que 14,5% dessas denúncias de violações são contra familiares ou pessoas próximas às vítimas — como o que ocorreu com Stefany Vitória e Yara Karolaine. As garotas foram mortas por pessoas que faziam parte do ciclo social e tinham a confiança da família. “Jamais pensei que ele poderia matar a minha filha, ninguém do bairro pensava isso. A gente frequentava a igreja dele, mas paramos de ir por uma questão espiritual", disse a costureira Márcia Teixeira sobre o pastor suspeito de matar a filha dela, a adolescente Stefany Vitória.
A mesma sensação de surpresa ocorreu com a mãe de Yara Karolaine, a autônoma Maria Geralda, de 43. Segundo ela, o suspeito pelo crime esteve em sua casa por duas vezes após o sumiço da menina e não demonstrou envolvimento com o caso. “Ele queria saber notícias, se tinha alguma pista do suspeito. Hora nenhuma mostrou preocupação", relata. O comportamento deste homem, inclusive, fez com que a mãe não cogitasse que ele pudesse ter relação com a morte de sua filha. "Nunca imaginaria que seria uma pessoa tão próxima. Ele tratava todo mundo super bem", diz.
No entanto, os principais suspeitos relacionados às denúncias feitas pelo Disque 100 são ainda mais próximos das vítimas (pais e responsáveis). Eles correspondem a 64,1% das denúncias de violações recebidas no último ano. "A casa, muitas vezes, não é um lugar seguro para as crianças. Quando a criança passa por alguma violência no ambiente doméstico, ela vai ser resistente em falar. Por isso, é muito importante que alguma pessoa do ciclo possa ouvir e dar credibilidade para aquele menino ou menina quando este denunciar algo", orienta a delegada Renata Ribeiro, chefe da Divisão Especializada em Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente, em Belo Horizonte.
Lei ampara denunciantes
Diante da escalada da violência, o governo Federal sancionou, em maio de 2022, a Lei Henry Borel (14.344/22). A medida estabelece medidas protetivas específicas para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e familiar. A norma também passou a considerar como crime hediondo o assassinato de menores de 14 anos. O texto foi batizado com o nome do garoto de 4 anos, que morreu por hemorragia interna após espancamentos no apartamento em que morava com a mãe e o padrasto, no Rio de Janeiro.
"Essa lei trouxe vários mecanismos que facilitam com que as denúncias cheguem aos órgãos competentes. Os artigos 23 e 24, por exemplo, garantem a proteção ao denunciante. Se uma pessoa denuncia o vizinho, ela pode solicitar uma medida protetiva caso se sinta ameaçada", orienta a defensora pública Daniele Bellettato Nesrala. A Lei também torna crime, com detenção seis meses a três anos, quando a pessoa deixa de comunicar à autoridade a prática da violência. "É dever de qualquer pessoa denunciar, mesmo que apenas suspeite daquilo. Quem vai produzir provas é a polícia", destaca a delegada Renata Ribeiro.
Saber ouvir as crianças
O levantamento do Disque 100 aponta que 38% das denúncias de violações em Minas Gerais ocorreram com crianças menores de cinco anos. Foram 9.034 do total de 23.534 dos relatos recebidos pelo órgão. "Embora isso possa sugerir que elas não são as principais vítimas, o que ocorre é geralmente o contrário. Como essa criança passa a maior parte do tempo no ambiente familiar, ela dificilmente vai pedir ajuda se o adulto, ou melhor, o agressor, estiver por perto", alerta Bellettato.
Para a defensora pública, isso reforça a necessidade de que outras pessoas do ciclo de convivência possam dar "a devida atenção" aos relatos das crianças, principalmente quando estas denunciam algum tipo de violência. "A partir dos seis anos, as crianças começam a ter mais contatos, seja com a escola, a igreja ou outros ambientes. Ela também está mais desenvolvida, consegue se comunicar. Então, ela cria coragem para contar sobre algo que possa estar acontecendo em sua casa. Por isso é importante não desconfiar da fala", diz.
Mudança de comportamento pode ser sinal
A mudança de comportamento também é um indício de que uma criança está sendo vítima de algum tipo de violência, como aponta a delegada Renata Ribeiro. Para a chefe da Divisão Especializada em Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente de Belo Horizonte, meninos e meninas que são vítimas de violência costumam ser desacreditados ao relatar o que sofreram. Isso, no entanto, impacta no comportamento daquela criança.
"A criança extrovertida fica mais contida, tem ainda a queda no desempenho escolar, há mudança de hábitos. Tudo isso precisa ser observado. Porém, é importante ficar atento, saber quem são os amigos, conversar diariamente com aquele menino ou menina. É fundamental que a criança saiba que ela tem um canal aberto, ou seja, se sinta confortável para relatar essas questões", finaliza.
Onde denunciar?
Disque 100
Está disponível diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados.
Disque 181
É um canal de comunicação direta e anônima dos cidadãos com as polícias e o Corpo de Bombeiros, com chamada gratuita.
Conselho Tutelar e Delegacias da Criança e do Adolescente e da Mulher
Cada cidade conta com uma unidade, onde pode ser feita a denúncia.