O edital recebeu 85 propostas entre os dias 22 de julho e 31 de agosto. Com inscrições totalmente gratuitas, ele buscou valorizar a literatura e a produção científica de mulheres negras mineiras, selecionando, premiando e publicando obras escritas em língua portuguesa, de qualquer gênero – como conto, romance, poesia, crônica, ensaio, literatura infantil, entre outros. A previsão é de que as três obras contempladas sejam publicadas até o fim do ano.
Para participar, era necessário ser mulher negra, nascida e residente em Minas Gerais, maior de 18 anos, autora única da obra ou representante de coletânea. A seleção foi realizada por uma Comissão Julgadora composta por três profissionais de reconhecida atuação no campo literário, com atenção à diversidade racial e de gênero, e teve como critérios de avaliação a qualidade literária e/ou científica, a originalidade, a relevância do tema ou abordagem proposta e o potencial de contribuição à visibilidade da literatura e/ou produção científica negra no Brasil.
Ana Paula dos Santos foi selecionada com “Ubuntu se faz com Sankofa: Pretuguês básico para uma luta antirracista”, e Samara da Silva Marques com o livro “Preta Metida: um guia para meninas e mulheres negras”, ambas na categoria “Obras Literárias”. Já Shirley Magda Oliveira dos Reis foi contemplada na categoria “Obras Científicas”, com o livro “Contar histórias: educar e resistir através das vozes das matriarcas negras”.
O “Edital de seleção de obras literárias e/ou científicas de autoras negras mineiras” foi promovido pela Coordenadoria de Combate ao Racismo e Todas as Outras Formas de Discriminação (Ccrad), junto à FCS, e custeado com recursos do Fundo Especial do Ministério Público de Minas Gerais (Funemp).
Saberes plurais
A historiadora e professora Samara da Silva Marques conta que o livro “Preta Metida: um guia para meninas e mulheres negras” foi escrito depois que ela soube do edital, mas que o projeto a acompanhava desde a infância, período em que ela começou a se dedicar à escrita. “Sempre me inspirei em autoras como Djamila Ribeiro, Tia Má, bell hooks, Maya Angelou, Angela Davis e muitas outras. Mas posso afirmar que para esse livro minhas maiores inspirações foram Michelle Obama e Malala Yousafzai, que contam suas histórias de uma forma que prende o leitor”, revela.
Samara afirma que tinha como intenção compartilhar um pouco de sua história e tentar, mesmo que minimamente, ajudar outras meninas e mulheres com experiências parecidas com a dela, “fortalecendo e dando voz a mulheres negras em uma sociedade que historicamente tenta silenciá-las”.
A autora ressalta, ainda, que editais como esse são muito importantes. “Enquanto mulher negra, professora, de origem humilde, do interior de Minas Gerais, eu sempre batalhei muito para conquistar meus objetivos, mas nunca imaginei que teria uma oportunidade como essa. Acredito que essas iniciativas, além de incentivarem autoras negras mineiras, também contribuem para a autoconfiança das mulheres e trazem um pouco de esperança. É importante não só para essas autoras, mas também para suas famílias, porque ser contemplada é uma conquista coletiva”, celebra.
Na opinião da professora e pesquisadora Ana Paula dos Santos, ao assegurar mecanismos para publicação dessas produções, o edital não apenas rompe com a lógica excludente que limitou a circulação dessas narrativas, mas também enriquece o patrimônio cultural e científico mineiro e brasileiro, incorporando a eles importantes perspectivas, memórias e conhecimentos. “A publicação física da minha obra amplia seu alcance por meio dessa iniciativa do Ministério Público de Minas Gerais e da Fundação Clóvis Salgado, um incentivo primordial às produções de autoras negras mineiras”, comentou.
A autora explica que ‘Ubuntu se faz com Sankofa: Pretuguês básico para a luta antirracista’ é um livro-projeto que, em formato de ‘caderno de textos’, traz um conjunto de ensaios, escritos em linguagem não acadêmica, que ampliam o conhecimento sobre as biografias e ideias centrais defendidas por intelectuais negros brasileiros envolvidos na luta antirracista, a partir de termos e conceitos fundamentais. “Ele busca instrumentalizar professores e alunos e subsidiar discussões e reflexões em sala de aula, contribuindo para a construção de uma educação antirracista. A ideia aqui é que o texto seja de fácil compreensão, sem academicismo e valorizando as heranças africanas”, explica a autora.
Ao definir como público-alvo específico as mulheres negras, o edital traz também protagonismo a uma produção rica e pulsante, mas ainda sub-representada no mercado editorial brasileiro, nas bibliotecas e no imaginário da população, fortalecendo ainda a pluralidade de saberes. É o que destaca Shirley Magda Oliveira dos Reis, autora do livro “Contar histórias: educar e resistir através das vozes das matriarcas negras”.
A obra é fruto da dissertação de mestrado defendida por ela no ano passado e apresentada no terreiro de candomblé Ilê Axé Afonjá Oxeguiri, localizado no bairro Concórdia, região Nordeste de Belo Horizonte. “Eu sou contadora de histórias afrocentradas já há um tempo, e eu sempre entendi que isso é mais do que só entreter. Contar histórias para o povo negro significa contar a partir das nossas vozes, dos territórios onde pisamos, de histórias que são muitas vezes silenciadas. Então eu escrevi sobre a voz das mulheres negras, contando histórias dentro das casas de tradição, os candomblés, ketu e angola, e os reinados e congados aqui do Concórdia”, comenta.
A autora também destaca a relevância da ação promovida pelo MPMG, junto à FCS. “É importante, é necessário e é urgente termos cada vez mais editais como esse, para garantir que o nosso pensamento seja editado, impresso e chegue nas mãos de quem deve chegar”, afirma.